segunda-feira, outubro 16, 2006

Busque Amor novas artes, novo engenho


Busque Amor novas artes, novo engenho
Pera matar-me, e novas esquivanças,
Que não pode tirar-me as esperanças,
Que mal me tirará o que eu não tenho.

Olhai de que esperanças me mantenho!
Vede que perigosas seguranças!
Que não temo contrastes nem mudanças,
Andando em bravo mar, perdido o lenho.

Mas, enquanto não pode haver desgosto
Onde esperança falta, lá me esconde
Amor um mal, que mata e não se vê,

Que dias há que na alma me tem posto
Um não sei quê, que nasce não sei onde,
Vem não sei como e dói não sei porquê.

Luís de Camões

sexta-feira, outubro 13, 2006

Sexta-Feira 13


Mais um dia de aulas…A campainha toca, mas não a queremos ouvir... Olhamos para o relógio já é tarde…já começou o grande dia – o dia de azar!Muitos escondem os olhos com medo de encontrar um gato preto. Já nem sequer vão à casa de banho, com o medo de partirem o espelho…Não se lembram da política irrisória em que vivemos, nem da valente economia do nosso Grande país. É lindo olhar para tudo isto e ver…que ainda existe superstição. Para quem não sabe hoje é dia 13…ai que desgraça! Decerto que isto não passa de uma observância de cultos arcaicos e populares.
Tirado de :

quinta-feira, outubro 12, 2006

Há palavras que nos beijam

Para uma amiga (Eduarda) que ama:

Há palavras que nos beijam
Como se tivessem boca.
Palavras de amor, de esperança,
De imenso amor, de esperança louca.

Palavras nuas que beijas
Quando a noite perde o rosto;
Palavras que se recusam
Aos muros do teu desgosto.

De repente coloridas
Entre palavras sem cor,
Esperadas inesperadas
Como a poesia ou o amor.

(O nome de quem se ama
Letra a letra revelado
No mármore distraído
No papel abandonado)

Palavras que nos transportam
Aonde a noite é mais forte,
Ao silêncio dos amantes
Abraçados contra a morte.

Alexandre O'Neill

quarta-feira, outubro 11, 2006

Não te amo

Não te amo, quero-te: o amar vem d'alma.
E eu n'alma --- tenho a calma,
A calma --- do jazigo.
Ai! não te amo, não.

Não te amo, quero-te: o amor é vida.
E a vida --- nem sentida
A trago eu já comigo.
Ai, não te amo, não!

Ai! não te amo, não; e só te quero
De um querer bruto e fero
Que o sangue me devora,
Não chega ao coração.

Não te amo. És bela; e eu não te amo, ó bela.
Quem ama a aziaga estrela
Que lhe luz na má hora
Da sua perdição?

E quero-te, e não te amo, que é forçado,
De mau feitiço azado
Este indigno furor.
Mas oh! não te amo, não.

E infame sou, porque te quero; e tanto
Que de mim tenho espanto,
De ti medo e terror...
Mas amar!... não te amo, não.

Almeida Garrett

segunda-feira, outubro 09, 2006

Pirata


Para a Marisa que faz anos hoje:

Sou o único homem a bordo do meu barco.
Os outros são monstros que não falam,
Tigres e ursos que amarrei aos remos,
E o meu desprezo reina sobre o mar.

Gosto de uivar no vento com os mastros
E de me abrir na brisa com as velas,
E há momentos que são quase esquecimento
Numa doçura imensa de regresso.

A minha pátria é onde o vento passa,
A minha amada é onde os roseirais dão flor,
O meu desejo é o rastro que ficou das aves,
E nunca acordo deste sonho e nunca durmo.

Sophia de Mello Breyner

quarta-feira, outubro 04, 2006

A Carlos Drummond de Andrade


Não há guarda-chuva
contra o poema
subindo de regiões onde tudo é surpresa
como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
contra o amor
que mastiga e cospe como qualquer boca,
que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
contra o tédio:
o tédio das quatro paredes, das quatro
estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
contra o mundo
cada dia devorado nos jornais
sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
contra o tempo,
rio fluindo sob a casa, correnteza
carregando os dias, os cabelos.

João Cabral de Melo Neto

terça-feira, outubro 03, 2006

Poema água

Quero um poema húmido.
Que se embace na primeira leitura.
Que molhe a mente de quem o sinta.
E que lhes escorram pensamentos líquidos.

Quero me banhar ao escreve-lo.
Lavar meu corpo e minha alma
Do que é sólido.
E sentir um frescor de mergulho
Em cada parte.
Assim boiarei nos meus planos.
E finalmente afogarei meu bom senso.

Etiane Araldi

domingo, outubro 01, 2006

Pés


Lívidos, frios, de sinistro aspecto,
como os pés de Jesus, rotos em chaga,
inteiriçados, dentre a auréola vaga
do mistério sagrado de um afeto.

Pés que o fluido magnético, secreto
da morte maculou de estranha e maga
sensação esquisita que propaga
um frio nalma, doloroso e inquieto...

Pés que bocas febris e apaixonadas
purificaram, quentes, inflamadas,
com o beijo dos adeuses soluçantes.

Pés que já no caixão, enrijecidos,
aterradoramente indefinidos
geram fascinações dilacerantes!

Cruz e Sousa